1.Nos termos do artigo 34.º do Código Penal, não é ilícito o facto praticado como meio adequado para afastar um perigo actual que ameace interesses juridicamente protegidos do agente ou de terceiro, quando se verificarem os seguintes requisitos:
a) Não ter sido voluntariamente criada pelo agente a situação de perigo, salvo tratando-se de proteger o interesse de terceiro;
b) Haver sensível superioridade do interesse a salvaguardar relativamente ao interesse sacrificado; e
c) Ser razoável impor ao lesado o sacrifício do seu interesse em atenção à natureza ou ao valor do interesse ameaçado.
2.Por outro lado, de acordo com o art.º 292.º do mesmo código, quem, pelo menos por negligência, conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal. Na mesma pena incorre quem, pelo menos por negligência, conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, não estando em condições de o fazer com segurança, por se encontrar sob influência de estupefacientes, substâncias psicotrópicas ou produtos com efeito análogo perturbadores da aptidão física, mental ou psicológica.
3.Relativamente à conjugação destes dois artigos, ou seja cometer o crime de condução em estado de embriaguez invocando o direito de necessidade para afastar a ilicitude, o Tribunal da Relação de Guimarães, num Acórdão de 23/05/2022, decidiu que:
“I – No direito de necessidade, enquanto causa de justificação excludente da ilicitude, prevista no nosso ordenamento jurídico nas disposições conjugadas dos arts. 31º, nº1 e nº2, al. b), e 34º, ambos do Código Penal, o perigo que ameaça o bem jurídico a salvaguardar será «atual» quando for iminente ou, não obstante não o seja ainda, o protelamento do facto salvador represente uma potenciação do perigo, e, outrossim, nos denominados “perigos duradouros”.
II – A exigência legal da “sensível superioridade” do interesse salvaguardado, contida na al. b) do art. 34º, pressupõe que a justificação apenas opere quando é indubitável a superioridade à luz dos fatores relevantes de ponderação.
III – Outro requisito legal é o da adequação ou idoneidade do meio utilizado para afastar o perigo (cf. corpo do art. 34º), pelo qual se afasta para este efeito a utilização pelo agente de um meio que, segundo a experiência comum e uma consideração objetiva, seja inidóneo, ineficaz para salvaguardar o interesse ameaçado. Sendo possível o recurso à força pública em tempo útil, não é admissível o direito de necessidade. Havendo vários meios disponíveis, é adequado o recurso ao meio menos lesivo para o terceiro, afastando-se o direito de necessidade se o agente recorrer a um meio excessivo (que não é o menos prejudicial) para realização do objetivo da salvaguarda do interesse ameaçado.
IV – No caso, ressuma da factualidade apurada que o arguido procedeu à condução do seu veículo na via pública, não obstante se encontrar embriagado, por se ter visto confrontado com uma situação que representava perigo iminente (atual) para a sua integridade física.
V – O interesse na salvaguarda do direito à integridade física do arguido apresenta-se no caso concreto como notoriamente superior ao interesse subjacente à proibição legal da condução em estado de embriaguez. Um primeiro argumento que sustenta tal conclusão é o da diferente gradação das molduras penais penalmente previstas para as condutas violadoras dos bens jurídicos em cotejo. Ademais, cumpre ter presente que apesar de os crimes contra a integridade física e contra a segurança rodoviária visarem comumente acautelar a lesão daquele bem jurídico, constitucionalmente consagrado enquanto direito da pessoa humana (cf. art. 25º/1 da CRP), naqueloutros pune-se o naturalístico e efetivo dano a esse bem, que, in casu, estava em vias de ocorrer, ao passo que na punição da condução em estado de embriaguez o legislador antecipa a tutela penal para uma fase prévia à da concreta causação do perigo, a da mera atividade, rotulando-a de perigosa e, como tal, potenciadora de causação de perigo, sendo certo que no caso vertente nada permite afirmar que a conduta do agente criou concreto perigo para os bens jurídicos protegidos (a vida, a integridade física e o património de outrem, designadamente os demais utentes da via pública). Releva ainda a circunstância de que, no caso, o arguido não apresentava uma taxa de álcool no sangue desmesurada (era mediana), e que a sua condução se limitou ao essencial, ao imprescindível para se colocar em segurança, como é corroborado pelo facto de, logo que se apercebeu da chegada de agentes policiais às imediações, ter dirigido o veículo para junto deles visando obter proteção dos mesmos.
VI – Mostra-se, pois, razoável, perfeitamente tolerável, a preterição dos interesses individuais/comunitários protegidos pela incriminação da condução de veículo em estado de embriaguez perante a necessidade de salvaguarda do interesse do arguido em manter incólume a sua integridade física, que se encontrava ameaçada.
VII – Por outro lado, o meio utilizado pelo arguido para afastar o perigo real e atual de lesão da integridade física que sobre si impendia revela-se, no circunstancialismo do caso, adequado, porquanto não lhe era exigível aguardar no interior da habitação da testemunha pela chegada ao local da polícia (entretanto chamada por outra testemunha), pois que essa circunstância, face à verificada hipótese de arrombamento da porta de entrada do imóvel por banda dos indivíduos que lhe queriam bater e a concomitante e compreensível ausência de perceção do arguido do tempo que os agentes policiais demorariam a chegar ao local, não garantiria de forma satisfatória e eficaz a sua segurança. Assim como não é viável concluir que a fuga a pé do arguido lhe permitiria escapar, em tempo útil, da ira agressora dos indivíduos em causa, nem esse facto decorre, sem mais, das regras da experiência, tanto mais que estes ainda o alcançaram e tentaram agredir, quando ele se encontrava já no interior do seu veículo automóvel.
VIII – Conclui-se, destarte, que o recorrente atuou ao abrigo do direito de necessidade, e, em conformidade, de uma causa legal de exclusão da ilicitude do facto (cf. arts. 31.º, n.º 2, al. b), e 34.º do Código Penal), pelo que se considera justificada a conduta atinente à condução de veículo em estado de embriaguez, impondo-se a sua absolvição”.
Por fim, segundo a Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária (ANSR), “em termos da condução, os efeitos do álcool no organismo levam à diminuição de capacidades essenciais para conduzir em segurança. A investigação desenvolvida ao longo de várias décadas sobre a influência do álcool na capacidade de conduzir, revela que esta se degrada principalmente devido a perturbações ao nível de aspetos cognitivos e do processamento de informação que acarretam, entre outros efeitos, uma menor capacidade e rapidez de decisão, aumento do tempo de reação e descoordenação de movimentos. Esta perda de capacidades, bem como as alterações de comportamento que podem levar a estados de euforia e desinibição, aumentam de forma muito significativa o risco de se envolverem em acidentes rodoviários”.
Sousa dos Santos
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