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Ciências Forenses, Geologia Forense

A GEOLOGIA FORENSE COMO FERRAMENTA AUXILIAR DA INVESTIGAÇÃO CRIMINAL

INTRODUÇÃO

A Geologia Forense está relacionada com a utilização de princípios, práticas e procedimentos geológicos no âmbito da investigação criminal. Para o efeito, um geólogo forense identifica, analisa e compara materiais geológicos, tais como o solo, rochas, minerais e fósseis encontrados num receptor (e.g. um suspeito, um veículo ou outro meio de transferência, tal como a água) para possíveis áreas de origem (e.g. uma cena de crime ou um local de álibi). O objectivo deste tipo de comparações é estabelecer o grau de probabilidade do local de origem do material; e assim, associar ou desassociar uma pessoa ou objecto com determinada localização. Noutros casos, a comparação dos materiais geológicos ou seus derivados é utilizada para determinar o tempo, a causa ou a responsabilidade dum incidente. Daí que a geologia forense seja uma excelente ferramenta auxiliar da investigação criminal e, como tal, todas as subdisciplinas das geociências têm uma potencial aplicação forense. Porém, a sedimentologia, a mineralogia, a petrologia, a geoquímica, a paleontologia e a geofísica, foram as que deram maiores contributos até este momento. Os métodos de prospecção geofísica têm sido amplamente utilizados por arqueólogos forenses para localizar e caracterizar sepulturas clandestinas e objectos enterrados, tais como drogas e armas. Contudo, a aplicação mais amplamente reconhecida da geologia forense é o uso dos materiais geológicos como vestígios que podem ser utilizados para ligar um suspeito a uma cena de crime. Na literatura forense e legal, os sedimentos, o solo, a poeira e os fragmentos de rochas têm sido frequentemente agrupados num único termo: “vestígio geológico”. Em Portugal, esta ciência forense encontra-se a dar os primeiros passos, existindo actualmente muito poucos estudos nesta área.

BREVE HISTÓRIA DA GEOLOGIA FORENSE

A potencial contribuição do estudo das rochas, minerais e sedimentos para investigações criminais é reconhecida há mais de um século, mas os seus protagonistas não eram, de facto, geólogos. Em 1893, no seu “Hanbuch fur Untersuchungsrichter” (ou Handbook for Examining Magistrates), Hans Gross, um professor de criminologia austríaco, enunciou a “poeira” do calçado dum suspeito como um possível indicador dos seus movimentos. Em 1908, foi o químico alemão Georg Popp, o primeiro investigador a considerar o solo como uma evidência/vestígio, resolvendo o homicídio de Eva Disch. Este professor reconstruiu os movimentos do suspeito, analisando a poeira encontrada nos sapatos: a camada superior, portanto, a mais antiga, continha fezes de ganso e outros materiais geológicos que foram comparados com os encontrados no passeio fora de casa do suspeito. A segunda camada continha fragmentos de arenito vermelho e outras partículas que foram comparados com as amostras da cena em que a vítima havia sido encontrada. A camada mais baixa, portanto, a mais jovem, continha tijolo, pó de carvão, cimento e toda uma série de outros materiais que foram comparados com as amostras dum local em redor dum castelo, onde a arma do crime e as roupas do suspeito tinham sido encontradas. O suspeito afirmou que tinha andado apenas nos campos no dia do crime, todavia esses campos continham quartzo leitoso, mas Popp não encontrou este tipo de material nos sapatos, apesar de o solo ter sido molhado nesse mesmo dia, por isso, comprovou que o suspeito estava a mentir. Também nesta época, o escritor inglês de ficção, Sir Arthur Conan Doyle, criador literário do investigador Sherlock Holmes, empregou igualmente a comparação do solo em um dos três casos em que ele se tornou um investigador da vida real. O trabalho destes homens teve uma importante influência sobre Edmund Locard, inicialmente um estudante de medicina legal, que mais tarde passou a ser director do Laboratório de Polícia Técnica em Lyon, França, o qual desenvolveu os primeiros pormenores sobre os procedimentos científicos para a análise de vestígios de poeira e estabeleceu o princípio de troca de Locard, tão famoso nos cientistas forenses: “Entre o autor e o local do crime há sempre troca de elementos”.

Apesar de todo este trajecto,só em 1975 é que se assiste à edição do primeiro livro sobre esta ciência, daí que o domínio da relação da geologia com a ciência forense se tenha mantido envolto em mistério durante muitos anos. Embora a interacção do Homem com o ambiente envolvente seja objecto de constante estudo por parte dos cientistas físicos, ainda existe, actualmente, pouca literatura relativa a esta área. Isto, não obstante, durante a primeira metade do século XX, os governos e estabelecimentos de ensino da Suíça, França, Alemanha, Reino Unido e Estados Unidos da América terem começado a desenvolver laboratórios de investigação especializados, para analisar vestígios geológicos no âmbito forense.

Nas últimas duas décadas, a importância da geologia forense aumentou de forma constante, sendo aplicada não só para ligar suspeitos a casos criminais, mas também para rastrear a procedência das drogas ou mercadorias contrabandeadas, incluindo a fauna, explosivos e reconstruir e desvendar os crimes de guerra, bem como as possíveis aplicações para detectar atentados contra o ambiente. Outra nova área de desenvolvimento da geologia forense é a sua utilização no domínio da “intelligence”. Uma pessoa pode afirmar, por exemplo, que nunca foi a um determinado local, mas depois é encontrada com sedimentos desse ponto, o que a vai ligar a uma localização geográfica. Quem não se lembra do afloramento que existia atrás de Osama Bin Laden na TV, após o 11 de Setembro? Qual era a localização? Um geólogo que fizesse trabalho de campo nessa área facilmente seria capaz de localizar o afloramento, e isso actualmente já acontece, por exemplo, o geólogo John Shroder foi capaz de identificar a região onde Bin Laden havia sido avistado no Afeganistão em 2001 (ver Geotimes, Fevereiro de 2002).

O futuro da Geologia Forense aparenta ser muito promissor, contudo, para que tal seja possível e assim surjam novas oportunidades, torna-se necessário que sejam operadas muitas mudanças. Novos métodos estão a ser desenvolvidos para se tirar partido do poder inerente de discriminação dos materiais geológicos. A difracção de raio-X pode revolucionar o exame de solo em termos forenses e, quando os laboratórios tomarem este tipo de técnica como rotina, será possível efectuar uma análise mineralógica quantitativa que é facilmente reprodutível. Apesar disso, o microscópio ainda continuará a ser uma ferramenta importante na identificação de um grão invulgar ou de um artefacto. Os métodos de amostragem, a formação sólida e completa das pessoas que recolhem amostras para fins forenses, terão que ser aperfeiçoados.

A UTILIDADE DA GEOLOGIA FORENSE

Em toda a parte, porque os tamanhos, tipos e distribuição dos materiais terrestres são tão variados, a probabilidade de um material geológico ser de um local único é elevada, portanto, o valor probatório destes materiais é de extrema importância na maioria dos casos. Tal valor está directamente relacionado com o número quase ilimitado de tipos de materiais e com o grande número de medições e observações que se podem efectuar sobre estes materiais, pois existe uma grande variedade de minerais, rochas e fósseis que são identificáveis, reconhecíveis e que podem ser caracterizados. É esta diversidade de materiais geológicos, combinada com a capacidade de medir e observar os diferentes tipos, que fornece o poder da discriminação forense.

Existem muitas questões/situações em que as técnicas, procedimentos e os dados geológicos podem ser aplicados no âmbito forense, nomeadamente:

  •  Se esteve presente um determinado indivíduo, ou veículo, ou item num determinado local (por exemplo, cena de crime);
  • Qual foi a sequência e, se possível o tempo, da visita a esse local e provavelmente a outros;
  •  A localização de objectos enterrados (por exemplo, cadáveres, armas, drogas, etc.);
  •   A fonte de itens importados/contrabandeados;
  • A causa da morte (especialmente em casos de um possível afogamento ou asfixia);
  • A origem geográfica de restos humanos não identificados;
  • A duração de tempo que um organismo está num determinado local e a duração do intervalo post-mortem.

Os fragmentos de rocha, sedimentos, solos e poeiras podem estar presentes em toda uma variedade de itens de interesse, mas os mais frequentemente submetidos a laboratório para exame de um crime são: roupas, calçados, veículos, materiais para pisos, utensílios de escavação, filtros para máquinas de lavar, sacos de polietileno em que os itens tenham sido armazenados, armas de fogo, facas, etc. As amostras associadas com o corpo humano também são às vezes sujeitas a exame, nestas incluem-se raspagem dos dedos e das unhas, lavagens do cabelo, passagens nasais, traqueia e pulmões, o conteúdo do trato gastrointestinal e fezes.

Existe na literatura, alguns factos descritos sobre a utilização dos vestígios geológicos como ferramentas auxiliares da investigação criminal, levando o seu estudo a resolução de crimes, um exemplo disto foi o “13th INTERPOL Forensic Science Symposium” que decorreu em Outubro de 2001 em Lyon, França, onde foi apresentado um artigo que ostenta um resumo dos relatórios sobre as evidências geológicas desde 1998, tendo sido relatados vários casos resolvidos devido ao exame forense deste tipo de vestígios.

Por exemplo, em Iwate no Japão, num caso de homicídio foi encontrado um corpo de uma vítima enterrado numa praia. Perante isto, foram recolhidas amostras de solo do veículo dum suspeito e areia da praia (amostra controlo) para se efectuar análises e posteriormente realizar-se a comparação entre as amostras. Os resultados expuseram um valor inusitado de um mineral denominado por augite em ambas as amostras recolhidas, tanto no veículo do suspeito como na praia e, para além disso, grande parte destas partículas de augite estavam caracterizadas por grandes cristais (1-2 mm) e abarcavam inclusão distintiva, levando a que a observação destes cristais efectuasse a ligação do suspeito com a vítima, realçando assim, o potencial forense na análise dos solos. Na maioria dos casos, para se realizar comparações entre amostras de solo provenientes de uma cena de crime e uma amostra suspeita, seja ela recolhida num cadáver, num veículo ou mesmo num calçado, é necessário efectuar vários tipos de análises, por exemplo, crivagem, difracção a laser, estudo da mineralogia da amostra total, estudo dos minerais de argila em lâminas sedimentadas, estudo da mineralogia da fracção densa (Quadro 1), etc., para que os resultados conquistados sejam consistentes. Isto porque, contrariamente ao que acontece com outros países, Portugal não dispõe ainda, de um equipamento designado por QUEMSCAN (Quantitative Evaluation of Minerals by Scanning Electron Microscopy), que possibilita, com apenas uma pequena porção de solo, adquirir vários resultados num tempo reduzido realizando meramente uma única análise. O QEMSCAN é um sistema automatizado de análise mineral e baseia-se na microscopia electrónica de varrimento, sendo esta técnica amplamente utilizada não só na geologia sedimentar, mas também em muitos ramos da ciência forense. Este sistema utiliza várias tecnologias para analisar minerais e permite obter: as imagens das partículas, as associações minerais, a estimativa dos grãos e o tamanho das partículas, as características do minério, a moda mineralógica das amostras, etc. Existem vantagens e limitações para todas as técnicas de análise mineral disponíveis, mas esta técnica tem demonstrado ser bastante consistente, na medida em que podem ser recolhidos grandes quantidades de dados mesmo a partir de amostras muito pequenas e a aquisição dos dados é extraordinariamente rápida. Este tipo de equipamento poderia ser uma opção futura para obter análises de solo das cenas de crime, contribuindo para isso para um grande desenvolvimento das ciências forenses e, em especial, da geologia forense em Portugal.

Quadro 1: Exemplos de minerais da fracção densa (adaptado de Reis, 2010).

A GEOLOGIA FORENSE EM PORTUGAL

Em Portugal, a geologia forense encontra-se numa fase embrionária, contudo já existem estudiosos e entidades científicas que começam a desenvolver alguns trabalhos e projectos nesta área. Alguns exemplos disto são: a criação de uma base de dados de sedimentos para aplicações forenses, desenvolvida por investigadores da Universidade do Porto, Centro de Geologia, Departamento de Geociências, Ambiente e Ordenamento do Território da Faculdade de Ciências. Com vista à constituição de uma base de dados para aplicação forense, com as características dos sedimentos e solos de Portugal Continental, foram amostradas praias (praia e duna), foz de rios, cabedelos e restingas de norte a sul de Portugal Continental. As amostras recolhidas foram analisadas através de várias técnicas analíticas e efectuados diversos estudos para avaliar que propriedades (cor, distribuição granulométrica, composição química e susceptibilidade magnética) dos sedimentos são mais adequadas para a discriminação entre as áreas amostradas e amostras recolhidas; os Mestrados em Geologia (Faculdade de Ciências) e em Ciências Forenses (Faculdade de Medicina), na Universidade do Porto, que contêm a disciplina geologia forense, onde se pretende que os alunos adquiram conhecimentos científicos e técnicos no campo da amostragem e análise de materiais que se relacionam directamente com as ciências forenses, tais como: solos, sedimentos, minerais, fragmentos de rocha, pigmentos, gemas, entre outros e, ainda na avaliação, interpretação, apresentação e explicação das provas geológicas, a fim de promover as melhores práticas na sua futura aplicação; o GIGPAF – Grupo de Investigação em Geologia e Palinologia Forenses, afecto à Faculdade de Ciências da Universidade do Porto; A dissertação intitulada “ A análise palinológica e mineralógica de solos portugueses e o seu potencial forense”, apresentada à Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias para a obtenção do grau de Mestre em Biologia, realizada conjuntamente com o Departamento de Ciências da Terra (laboratório de sedimentologia) da Universidade de Coimbra, onde foi efectuada pela primeira vez a comparação de duas regiões distintas de Portugal (distrito de Coimbra e distrito de Setúbal), relativamente à sua composição palinológica e mineralógica, com o intuito de comprovar o potencial forense deste tipo de amostras; entre outras.

CONCLUSÃO

O solo tem uma complexidade extrema, não só em componentes como minerais, óxidos e matéria orgânica, mas também ao nível da natureza física, tais como a granulometria e a densidade. A análise forense dos solos e dos sedimentos é um campo de rápido desenvolvimento que tem as suas raízes nas geociências e que aplica os princípios das mesmas para a arena forense. Na realidade, existe uma enorme diversidade entre os materiais da superfície terrestre e o facto das técnicas mais recentes serem capazes de os caracterizar e discriminar de forma bastante detalhada, investe-os de uma extrema utilidade no contexto forense. As técnicas de geociência forenses e os dados obtidos podem ser aplicadas ao serviço da lei civil e como ferramentas da investigação criminal, relativamente a problemas de acidentes ambientais, falhas de construção, poluição e, como é óbvio em crimes graves, como homicídios, terrorismo, genocídio, incêndio criminoso, tráfico de drogas, etc. Em casos de crimes graves, um dos mais comuns procedimentos é determinar se um suspeito (ou os seus meios de transporte, tal como um automóvel ou moto) esteve presente na cena de um crime. Tudo isto é possível porque as partículas do solo e sedimentos aderem facilmente a roupas, sapatos, veículos e ferramentas, podendo, consequentemente, ser tratadas como vestígios, associando ou eliminando um suspeito a uma dada cena de crime. Assim, um número elevado de métodos analíticos, tem sido utilizado para a sua caracterização. Por sua vez, os materiais, métodos e instrumentos disponíveis para os geólogos forenses têm evoluído nos últimos anos de modo a proporcionar a preservação das provas recolhidas assim como métodos de medição mais objectivos. Contudo, em Portugal, esta ciência ainda está numa fase bastante embrionária, sendo por isso necessário um constante investimento ao nível da investigação, formação de recursos humanos e aquisição de meios materiais, para que seja possível aproveitar todas as suas potencialidades na área forense.

REFERÊNCIAS

  • Hayes, R.A. (2002). Earth Material as Evidence. Forensic geologists uncover evidence in soil and water. Trial practice. Michigan Bar Journal. 42-44.
  • Morgan, R.M., Wiltshire, P.E.J., Parker, A. & Bull, P.A. (2006). The role of forensic geoscience in wildlife crime detection. Forensic Science International, 162: 152–162.
  • Murray, R.C. & Tedrow, J.C.F. (1992) Forensic Geology. 2 Ed. New Jersey: Prentice Hall Inc., Englewood Cliffs, 203 p.
  • Pye, K. & Croft, D. J. (2004). Forensic Geoscience: Principles, Techniques and Applications. Geological Society, London, Special Publications, 232 p.
  • Pye, K. (2007). Geological and Soil Evidence. Forensic Applications. New York: CRC Press, 323 p.
  • Reis, C. (2010). Análise palinológica e mineralógica de solos portugueses e o seu potencial na prática forense. Dissertação apresentada à Universidade Lusófona de Humanidades e Tecnologias para a obtenção do grau de Mestre em Biologia, orientada por Frederico Almada, Lisboa.

Carina Reis

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