A vida tem coincidências destas. No dia em que tombou em serviço mais um militar da Guarda Nacional Republicana e dois outros ficaram feridos, fazendo jus ao compromisso que assumiram quando juraram bandeira e efetuaram o compromisso de honra, foi publicado o Despacho n.º 12094/2016, do Gabinetes do Ministro das Finanças e da Ministra da Administração Interna que autoriza a abertura de 300 lugares dos Quadros das Armas, para admissão ao Curso de Formação de Guardas no ano de 2016, tendo em vista o ingresso na Guarda Nacional Republicana.
Uma coincidência que serve de alerta para aquilo que pode espreitar os candidatos admitidos em qualquer local onde venham a prestar serviço depois de ter concluído com sucesso o Curso de Formação de Guardas e das decisões que são chamados a tomar em frações de segundo, mas cujas sequelas os podem perseguir e aos familiares para sempre, muitas vezes incompreendidos pela sociedade, incompreensão essa que nalguns casos raia o destrato. Este triste episódio soma-se a outros, sendo o mais recente aquele que ocorreu no Porto Alto, e onde, mais uma vez, outro militar da GNR foi baleado na sequência de uma perseguição.
Mas, a própria instituição atravessa um período conturbado. Desde logo, a aprovação apressada, ou até talvez mesmo impetuosa de uma Portaria ministerial sobre o horário de referência, ao que consta por pressão de algumas associações, à qual se seguiu uma Norma de Execução Permanente (NEP) do Comando Geral que veio “regular o regulamento”. No final do processo, o resultado não foi o esperado, e todos se viraram contra o autor da NEP. Ao que parece a senhora ministra da Administração Interna, fruto do ruído de fundo que se gerou, “ordenou ao Comando Geral da GNR a revisão da NEP” e uma das associações que afinal já não quer um horário de referência de 40 horas, mas um como o da Polícia de Segurança Pública com 36 horas, veio interpor uma providência cautelar. Tal como tínhamos previsto, num artigo anteriormente escrito, acabou por ser o comandante-geral da GNR a arcar com as consequências negativas da implementação da medida, deixando a tutela numa posição confortável.
Convém esclarecer que não somos contra um horário na GNR. Contudo, tal como defende o presidente da Associação Nacional de Sargentos da GNR, não se teria chegado a este ponto, em que o ruído é de tal forma elevado e em que ninguém vai ficar bem na fotografia final, se houvesse um período de testes para se aferir qual seria o melhor caminho a seguir. Assim, a nosso ver não se prejudicaria a segurança de pessoas e bens, nem a vida dos militares, nem a condição militar. Nesta matéria, concordo com o psiquiatra Pedro Afonso, o qual num artigo escrito no jornal Observador afirmou a dado passo que: “O excesso de trabalho que assistimos atualmente no mundo laboral é a reintrodução de um novo sistema esclavagista que se fundou sobre a destruição da família. Afinal o escravo era aquele que não tinha o direito de formar uma família e que poderia ser separado dos seus familiares para servir um senhor; um escravo continua a ser aquele a quem se pode colocar em risco os vínculos familiares, a saúde e a própria vida para servir um objetivo material.” E, como referiu o Presidente da República, mais importante que números “são pessoas de carne e osso”.
Muitas das forças de segurança de natureza militar, congéneres da GNR, dispõem de um horário que varia entre as 36 e as 42 horas semanais, sendo o excesso transformado numa compensação monetária ou em dias de férias, mantendo o equilíbrio entre a vertente profissional dos seus elementos com tudo o que lhe está associado e a respetiva vida privada. Esta harmonia é extremamente importante para que se possam prevenir flagelos como o alcoolismo, a toxicodependência e o suicídio nas fileiras destas organizações. Não me lembro de nenhuma associação ter ido por este caminho, acho que há uma tendência excessiva para copiar o modelo de uma “força de segurança com natureza de serviço público” como sendo o único possível, o que poderá, mais cedo ou mais tarde, conduzir a um beco sem saída.
Constitui, ainda, reflexo dos tempos conturbados o mediatismo que tem assumido a possível promoção dos coronéis da GNR ao posto de brigadeiro general, não sabemos se mediante promoção (para tal tinham de frequentar o Curso de Promoção a Oficial General) ou através de graduação. Isto, embora corresponda a uma antiga aspiração dos oficiais desta força de segurança, estará a lançar algum mal-estar no seio dos oficiais oriundos da Academia Militar que aspiram a ascender ao generalato e se consideram os únicos a tanto legitimados, tal como não será bem visto no seio das Forças Armadas cujos generais progressivamente verão a sua entrada vedada na Guarda. Esta questão está relacionada com a publicação do novo Estatuto do Militar da GNR que tem vindo a ser sucessivamente adiada e que trará algumas alterações, nomeadamente no que diz respeito às férias, à avaliação do mérito e às suas implicações nas promoções, ao tempo de permanência nos postos para efeitos de promoção, às condições de acesso e progressão na carreira.
Finalmente, está a decorrer o processo legislativo relativo a um novo diploma, aplicável à GNR e às Forças Armadas que revogará o Decreto-Lei n.º 214-F/2015, e que virá (pelo menos espera-se isso) aclarar alguma nebulosidade que existe no sistema, com sérias implicações na transição para reserva (na efetividade e fora da efetividade de serviço) e para a reforma, sendo por isso aguardado com bastante expetativa por muitos militares.
Em suma, aos candidatos admitidos espera-os alguma turbulência, com a sociedade em mutação, sucedendo-se os episódios de violência contra os elementos das forças e serviços de segurança. Como tal, as forças e os serviços de segurança, onde se inclui a GNR, têm de estar num processo de adaptação permanente em termos de meios e de “modus faciendi”. Além disso, o atual contexto evidencia alguma crispação no interior da organização, a qual no momento oportuno saberá dar a resposta adequada à semelhança do que aconteceu noutras ocasiões, salvo se algum deslumbramento fútil, o voluntarismo ou a impetuosidade, a conduzir para um beco sem saída onde se tornará uma presa fácil de alguns predadores sempre à espreita, acontecendo-lhe o mesmo que à Guarda Fiscal em 1993, com duvidosos benefícios para todos os envolvidos.
Manuel Ferreira dos Santos
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