Ao contrário do que se possa pensar, a atividade de prestação de serviços de apoio militar (e.g. logística, formação), ou mesmo o fornecimento, mediante pagamento, de combatentes devidamente treinados, equipados, armados e enquadrados por parte de entidades particulares, perde-se na noite dos tempos.
Com o advento do Estado Moderno e com a implementação do denominado contrato social, procurou-se cercear a possibilidade de utilização da força por parte deste tipo de entidades, ficando o Estado com esse monopólio e com a obrigação de assegurar a defesa, bem como garantir a liberdade e segurança dos cidadãos.
Contudo, a partir dos anos 50 do século passado ocorreu um processo silencioso de ausência de alguns espaços por parte das forças de segurança, ou uma diminuição da qualidade dos serviços prestados, criando-se a ideia generalizada de que o Estado não conseguia aí garantir a segurança, em termos aceitáveis, o que levou os particulares a assumir responsabilidades nesta matéria, recorrendo à segurança privada (e.g. vigilantes dos supermercados, assistentes de recinto desportivo nos estádios de futebol, os guarda-costas). Mesmo, os locais públicos situados nas grandes urbes, como sejam as estações ferroviárias, os hospitais, centros de saúde, estabelecimentos de ensino, devido à tendência estatal para congelar admissões de novos funcionários, não preenchendo os lugares que entretanto vão vagando, a segurança, na maior parte dos casos, passou a ser executada por vigilantes privados, dada a cada vez maior necessidade de formação e de qualificação técnica e de todo um conjunto de encargos daí decorrentes que o Estado não quer suportar[1].
É de realçar que, em 2013, cerca de 40 mil empresas de segurança privada na Europa empregavam mais de 1,5 milhões de contratantes de segurança privada. A nível mundial, o setor da segurança privada foi avaliado em 200 mil milhões de dólares em 2016, com cerca de 100 mil empresas de segurança privada e 3,5 milhões de funcionários. Em Portugal, de acordo com o último Relatório de Segurança Privada (2016), estarão ativos 37.643 seguranças privados.
Com o final da Guerra Fria, assistiu-se, um pouco por todo o lado, à diminuição do número de quadros nas Forças Armadas, atirando para a disponibilidade um acervo considerável de mão-de-obra, em muitos casos, altamente qualificada. Mas, ao mesmo tempo, passou-se de um mundo bipolar, para uma situação de unimultipolaridade[2], com uma única superpotência e várias potências regionais, ao que se juntou a multiplicação de Estados no seio da comunidade internacional, as assimetrias demográficas e económicas, o renascimento dos nacionalismos, das identidades culturais, a disseminação da violência (terrorismo), a proliferação de armas de destruição maciça sem controlo, os conflitos regionais, o surgimento de novos atores na cena internacional e a escassez de recursos.
Perante este quadro, para compensar a redução das Forças Armadas no contexto de um número crescente de missões no estrangeiro e de orçamentos cada vez mais limitados, as empresas de segurança privada e outras entidades privadas (muitas delas lideradas por ex-militares) começaram a absorver os quadros militares lançados na disponibilidade e a prestar determinado tipo de serviços (e.g. logísticos de apoio efetivo ao combate, fornecimento de tecnologia militar, participação na reconstrução pós-conflito, segurança de delegações, construção de acampamentos de campanha, atividades de formação, resgates aéreos e apoio a atividades de ajuda humanitária)[3]. Surgiram assim, as denominadas empresas militares privadas (EMP) cuja génese assenta, não muito raramente, nas empresas de segurança privada (ESP)[4].
As empresas militares privadas podem ser definidas como “empresas internacionais, com o devido enquadramento jurídico, que oferecem serviços que envolvem o potencial exercício da força, de maneira sistemática, por meios militares ou para militares, bem como o melhoramento, a transferência, a facilitação, a dissuasão e a neutralização desse potencial, ou o conhecimento necessário para implementá-lo, pelos clientes”[5].
A própria União Europeia (UE) recorre a estas empresas no estrangeiro para proteger as suas delegações e o seu pessoal e para apoiar as suas missões civis e militares no âmbito da no âmbito da Política Comum de Segurança e Defesa (PCSD).
Mas nesta matéria, a UE não dispõe de um quadro regulamentar próprio, embora tenha aderido (tal como 23 Estados-Membros) ao Documento de Montreux (primeiro documento importante que define o modo como o Direito internacional se aplica a estas empresas) e seja membro do Grupo de Trabalho da Associação do Código de Conduta Internacional para Prestadores de Serviços de Segurança Privada. Por este motivo, as práticas dos Estados-Membros neste domínio, os processos de contratação e a qualidade dos sistemas de regulação variam significativamente, sendo que muitos deles as utilizam para apoiar os seus contingentes militares em determinadas operações, recorrendo a quadros regulamentares inspirados no modelo americano, instituído aquando do conflito iraquiano e para beneficiar as empresas militares envolvidas em missões de combate.
Assim, para ultrapassar esta situação, o Parlamento Europeu elaborou um Relatório (A8-0191/2017), onde recomenda, nomeadamente que:
- A Comissão Europeia elabore um Livro Verde com o objetivo de envolver todas as partes interessadas dos setores público e privado da segurança num processo de consulta e debate abrangente sobre os processos destinados a identificar oportunidades de colaboração direta com maior eficiência e a estabelecer um conjunto de regras de base em matéria de participação e boas práticas;
- Sejam criadas normas de qualidade da UE específicas ao setor;
- Se clarifique a definição destas empresas, uma vez que a ausência de uma tal definição pode dar azo a lacunas legislativas;
- Se defina de modo preciso os serviços militares e de segurança relevantes;
- O Conselho acrescente sem demora os serviços prestados por estas empresas à Lista Militar Comum da União Europeia.
- A Comissão desenvolva um modelo regulamentar eficaz que:
- Contribua, através de uma diretiva, para harmonizar as diferenças de caráter jurídico entre os Estados-Membros;
- Reavalie e, deste modo, redefina as estratégias atuais de colaboração público-privada,
- Inventarie as empresas com utilização final única ou múltipla,
- Contextualize a natureza e o papel precisos das empresas militares e de segurança privada;
- Defina normas de alto nível para os prestadores de serviços de segurança privada que operam na UE ou no estrangeiro, inclusive os níveis adequados de controlo do pessoal em matéria de segurança e uma remuneração equitativa;
- Assegure a comunicação de irregularidades e ilegalidades cometidas pelas ESP e permita a sua responsabilização por violações, nomeadamente violações dos direitos humanos, durante as suas atividades no estrangeiro;
- Integre uma perspetiva marítima específica, tendo em conta o papel de liderança da Organização Marítima Internacional (OMI);
- A Comissão e o Conselho criem um quadro jurídico que exija que a legislação nacional controlo a exportação de serviços militares e de segurança e prestem informações, no relatório anual da UE, sobre as exportações de armamento e as licenças de exportação de serviços militares e de segurança concedidas pelos Estados-Membros, com o intuito de aumentar a transparência e a responsabilização públicas.
Atravessamos um momento em que há uma nítida falta de vontade dos decisores para afetação de recursos adequados às Forças Armadas, transversal à maior parte dos países ocidentais, o que tem implicações diversas que se fazem sentir no plano operacional. No caso concreto português, as Forças Armadas na última década perderam 25% dos seus efetivos.
Contudo, apesar deste quadro de restrições orçamentais, existe um número crescente de missões no estrangeiro, mas sem que haja um apoio público à mobilização das Forças Armadas para alguns desses teatros, o que se pode traduzir numa perda de popularidade que se pagará posteriormente nas eleições.
Assim, nos tempos mais próximos torna-se inevitável o recurso às empresas militares privadas para o desempenho de determinado tipo de missões. Pelo que urge definir um quadro legal que balize a sua atividade[6], sendo nessa linha que se insere esta louvável iniciativa do Parlamento Europeu, pois como referiu Max Weber, “o direito para usar a força física está atribuído a outras instituições ou entidades na medida em que o Estado o permita”[7].
Caso as queiramos erradicar e travar a privatização da segurança e da defesa, a Europa e por arrastamento também Portugal têm que estar preparados para investir de molde a que as Forças Armadas sejam detentoras dos recursos adequados para acudir às mais variadas solicitações, incluindo aquelas que atualmente estão acometidas às empresas militares privadas. Entre outras coisas, isso poderá implicar a reintrodução do serviço militar obrigatório.
Sousa dos Santos
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[1] Com interesse para esta questão, numa perspetiva jurídica, Gonçalves, Pedro, Entidades Privadas com Poderes Públicos, Almedina, Coimbra, 2008. Numa outra vertente, Judt, Tony, Um Tratado sobre os Nossos Actuais Descontentamentos, Edições70, Lisboa, 2011.
[2] Botelho, Teresa, Os paradoxos do hiperpoder norte-americano, Janus 2003 (2.15), OBSERVARE, UAL, Lisboa, 2003, p. 152.
[3] A este propósito, Blanco, Ramon, As empresas militares privadas: uma breve introdução (3.36), Janus 2014, OBSERVARE, UAL, Lisboa 2014, p. 152. Mira Vaz, Nuno António Bravo, AS EMPRESAS MILITARES PRIVADAS VIERAM PARA FICAR?, Revista Militar, Lisboa, 2005, p.819 e ss.
[4] Poe este motivo nalguns casos são denominadas empresas de segurança privada (ESP). Noutros, ainda, são conhecidas por empresas militares e de segurança privada (EMSP).
[5] Ortiz, Carlos, A crescente tendência da privatização da Segurança, Segurança Contemporânea, Pactor, Lisboa, 2016, p. 233.
[6] Sobre a prática de crimes por EMP, Ageli, Stella, Private military Companies (PMCs) and International Criminal Law: Are PMCs the New Perpretators of International Crimes?, Amsterdam Law Forum, vol. 8, nº 1, pp. 28-47, abril, Amsterdam, 2016.
[7] Citado por Ortiz, Carlos, A crescente tendência da privatização da Segurança, Segurança Contemporânea, Pactor, Lisboa, 2016, p. 242.
Sintético e apresenta bem uma realidade que muitos militares portugueses conhecem do seu empenhamento internacional uma vez que muitos dos nossos aliados fazem uso sistemático destas empresas e algumas até nos têm também apoiado. Alguns ex-militares portugueses trabalham/trabalharam nesta área que em Portugal ninguém quer ouvir falar (por enquanto!).