I
Do acervo de tarefas fundamentais do Estado português fazem parte a promoção do bem-estar e a qualidade de vida, a efetivação dos direitos ambientais, bem como a defesa da natureza e do ambiente, a preservação dos recursos naturais e um correto ordenamento do território. Pelo que todos têm direito a um ambiente de vida humano, sadio e ecologicamente equilibrado e o dever de o defender. Assim, para assegurar o direito ao ambiente, no quadro de um desenvolvimento sustentável, incumbe ao Estado, por meio de organismos próprios e com o envolvimento e a participação dos cidadãos, designadamente prevenir e controlar a poluição e os seus efeitos[1].
II
Por seu turno, a política de ambiente[2] visa a efetivação dos direitos ambientais através da promoção do desenvolvimento sustentável, suportada na gestão adequada do ambiente, em particular dos ecossistemas e dos recursos naturais, contribuindo para o desenvolvimento de uma sociedade de baixo carbono e uma «economia verde», racional e eficiente na utilização dos recursos naturais, que assegure o bem-estar e a melhoria progressiva da qualidade de vida dos cidadãos.
O Estado prossegue esta missão, tanto através da ação direta dos seus órgãos e agentes nos diversos níveis de decisão local, regional, nacional, europeia e internacional, como através da mobilização e da coordenação de todos os cidadãos e forças sociais, num processo participado e assente no pleno exercício da cidadania ambiental, consistindo o “direito ao ambiente consiste no direito de defesa contra qualquer agressão à esfera constitucional e internacionalmente protegida de cada cidadão, bem como o poder de exigir de entidades públicas e privadas o cumprimento dos deveres e das obrigações, em matéria ambiental, a que se encontram vinculadas nos termos da lei e do direito”.
A política de ambiente tem por objeto os componentes ambientais naturais, como o ar, a água e o mar, a biodiversidade, o solo e o subsolo, a paisagem, e reconhece e valoriza a importância dos recursos naturais e dos bens e serviços dos ecossistemas, assentando em vários princípios, nomeadamente da prevenção e da precaução, do poluidor-pagador, da responsabilidade, da recuperação, da transversalidade e da integração.
A proteção e a gestão dos recursos hídricos compreendem as águas superficiais e as águas subterrâneas, os leitos e as margens, as zonas adjacentes, as zonas de infiltração máxima e as zonas protegidas, e têm como objetivo alcançar o seu estado ótimo, promovendo uma utilização sustentável baseada na salvaguarda do equilíbrio ecológico dos recursos, seu aproveitamento e reutilização e considerando o valor social, ambiental e económico da água, procurando, ainda, mitigar os efeitos das cheias e das secas através do planeamento e da gestão dos recursos hídricos e hidrogeológicos. A proteção e a gestão dos recursos hídricos visam também salvaguardar o direito humano, consagrado pelas Nações Unidas, de acesso a água potável segura, bem como o acesso universal ao saneamento, fundamental para a dignidade humana e um dos principais mecanismos de proteção da qualidade dos recursos hídricos, assegurando ainda o princípio da solidariedade intergeracional.
III
A temática dos recursos hídricos é tratada na Lei n.º 58/2005 (Lei da Água) e legislação conexa, a qual estabelece o enquadramento para a gestão das águas superficiais, designadamente as águas interiores, de transição e costeiras, e das águas subterrâneas, não prejudicando a aplicação dos regimes especiais relativos, nomeadamente, às águas para consumo humano, aos recursos hidrominerais, aos recursos geotérmicos e às águas de nascente, às águas destinadas a fins terapêuticos e às águas que alimentem piscinas e outros recintos com diversões aquáticas.
Uma das principais preocupações nesta matéria é a poluição, ou seja a introdução direta ou indireta, em resultado da atividade humana, de substâncias ou de calor no ar, na água ou no solo que possa ser prejudicial para a saúde humana ou para a qualidade dos ecossistemas aquáticos ou dos ecossistemas terrestres daqueles diretamente dependentes, que dê origem a prejuízos para bens materiais ou que prejudique ou interfira com o valor paisagístico ou recreativo ou com outras utilizações legítimas do ambiente.
As fontes de poluição são variadas, nelas se incluem entre outras, as explorações agropecuárias, as indústrias, os transportes, as estações de tratamento de águas. Uma vez que estas atividades e outras associadas são extremamente importantes em termos económicos há necessidade de conciliar a política de ambiente com as restantes políticas sectoriais através da transversalidade e da integração, lançando-se mão dos princípios atrás referidos e de outros constantes da Lei da Água tais como o princípio do valor económico da água, o princípio da dimensão ambiental da água, o princípio da correção, e o princípio da cooperação.
Assim, tem de existir um equilíbrio entre estas atividades e a salvaguarda do ambiente, o que se consegue através da emissão de licenças, depois de verificados a satisfação de um conjunto de requisitos, vigorando nesta matéria o Regime de Utilização de Recursos Hídricos[3] e o Regime de Licenciamento Único de Ambiente[4]. As normas, critérios e objetivos de qualidade com a finalidade de proteger o meio aquático e melhorar a qualidade das águas em função dos seus principais usos, onde se inclui a poluição causada pela descarga de águas residuais, constam do Decreto – Lei n.º 236/98, de 1 de agosto, na sua atual redação e respetivos anexos[5]. Não podemos, ainda, olvidar o regime da responsabilidade ambiental que visa assegurar, perante toda a coletividade, a reparação dos danos ambientais causados no exercício de uma atividade ocupacional, tendo como base os princípios da responsabilidade e da prevenção, e operacionalizando o princípio do poluidor-pagador[6].
IV
O titular de licença deve instalar um sistema de autocontrolo ou programas de monitorização adequados às respetivas utilizações sempre que essa instalação seja exigida com a emissão do respetivo título. As características, os procedimentos e a periodicidade de envio de registos à autoridade competente fazem parte integrante do conteúdo do título. Para efeitos de inspeção ou fiscalização por parte das autoridades competentes, o titular da licença ou da concessão mantém um registo atualizado dos valores do autocontrolo ou dos programas de monitorização.
No caso de instalações suscetíveis de causar impacte significativo sobre o estado das águas, os seus utilizadores estão ainda obrigados a definir medidas de prevenção de acidentes e planos de emergência que minimizem os seus impactes. Além disso, qualquer acidente ou anomalia grave no funcionamento das instalações, nomeadamente com influência nas condições de rejeição de águas residuais ou no estado das massas de água, deve ser comunicada pelo utilizador à autoridade competente no prazo de vinte e quatro horas a contar da sua ocorrência.
Acresce que no domínio dos recursos hídricos, os organismos da Administração Pública competentes, além de observarem os princípios da prevenção e da precaução, devem verificar o cumprimento das normas que regulam esta matéria através da fiscalização[7] e da inspeção[8] de todas as entidades públicas e privadas, singulares ou coletivas, que exerçam atividades suscetíveis de causarem impacte negativo no estado das massas de água, de uma forma especial, os titulares de autorizações, licenças ou concessões de utilização dos recursos hídricos; os proprietários e possuidores de produtos, instalações ou meios de transportes suscetíveis de causar risco para recursos hídricos, as pessoas que desenvolvam atividades suscetíveis de pôr em risco os recursos hídricos ou que tenham requerido título de utilização para desenvolver tais atividades.
Sendo que no exercício das suas funções, deve ser facultada às entidades com competência de inspeção e de fiscalização[9] devidamente identificadas a entrada livre e permanência nas instalações onde se exercem as atividades sujeitas a medidas de fiscalização ou de inspeção, bem como a prestação da assistência necessária, nomeadamente através da apresentação de documentação, livros ou registos solicitados, da abertura de contentores e da garantia de acessibilidade a equipamentos. O pessoal encarregue da ação inspetiva ou fiscalizadora pode recolher informação sobre as atividades inspecionadas, proceder a exames a quaisquer vestígios de infrações, bem como a colheitas de amostras para exame laboratorial.
Não poderíamos deixar de frisar que no Código Penal português está previsto o crime de poluição desde que verificados vários requisitos, tal como na legislação relativa aos recursos hídricos consta um quadro contraordenacional punível com coimas extremamente elevadas.
V
Do que atrás ficou exposto poderíamos inferir que Portugal é um paraíso ambiental devido à legislação extremamente avançada que regula esta matéria. Contudo, isso não corresponde à verdade, tal como é atestado pelo caso do rio Tejo que nos últimos tempos mais parece um esgoto a céu aberto do que um curso de água onde outrora se pescava e praticavam diversas atividades lúdicas. Como se chegou a este ponto, neste caso e noutros? A mesma questão se poderia colocar a propósito dos episódios de legionella e do incêndio que deflagrou numa associação recreativa com um saldo trágico de vários mortos e feridos.
Daqui partimos para uma outra interrogação: será que os organismos competentes terão desenvolvido cabalmente a sua missão e atribuições? Se não o fizeram, de onde resulta essa inação?
No caso concreto dos recursos hídricos, gostaria de começar por questionar onde vão parar os autocontrolos? Quem analisa o seu conteúdo? São analisados ou simplesmente encaixotados numa arrecadação esconsa? Há alguma forma de comprovar que foram analisados? Quantos autos de contraordenação foram elaborados por desrespeito dos valores legalmente impostos?
Depois passava, a uma outra indagação. Todas as unidades de pequena, média e grande dimensão suscetíveis de gerar poluição, onde se incluem as Estações de Tratamento de Águas Residuais das Câmaras Municipais (concessionadas ou não), têm sido alvo de fiscalização e/ou inspeção a fim de detetar irregularidades em relação ao seu funcionamento e ao licenciamento? Fazem recolhas de amostras? São elaborados autos de contraordenação? Qual o seu resultado?
Os técnicos encarregues do licenciamento, da fiscalização e da inspeção estarão preparados para lidar com este tipo de situações que constituem um verdadeiro jogo do “gato e do rato”? É que além de conhecimentos técnicos profundos, devem dominar a legislação específica, bem como a conexa em termos de preservação da prova e das medidas que se impõem para que os processos-crime ou de contraordenação não passem de um simples “monte de papel mal amanhado” com um despacho de arquivamento a ornamentá-los. Os próprios magistrados dominarão toda a teia legal, tanto na vertente criminal como contraordenacional?
VI
Há uns meses, numa pesquisa que fiz sobre esta temática, constatei que na nossa vizinha Espanha aquando da revisão do seu código penal de 2010, foram alterados alguns dos artigos relacionados com a temática ambiental, e num deles devido à atuação manifestamente ilegal de determinadas autoridades ou dos respetivos funcionários (por ação ou omissão), a qual tornou necessária a intervenção do Direito Penal como “ultima ratio” para proteger os bens jurídicos ameaçados. Assim, no código penal espanhol, o artigo 329.º determina que “la autoridad o funcionario público que, a sabiendas, hubiere informado favorablemente la concesión de licencias manifiestamente ilegales que autoricen el funcionamiento de las industrias o actividades contaminantes a que se refieren los artículos anteriores, o que con motivo de sus inspecciones hubiere silenciado la infracción de leyes o disposiciones normativas de carácter general que las regulen, o que hubiere omitido la realización de inspecciones de carácter obligatorio, será castigado con la pena establecida en el artículo 404 de este Código y, además, con la de prisión de seis meses a tres años y la de multa de ocho a veinticuatro meses”.
Estamos, assim, perante uma forma de responsabilizar, além daqueles que habitualmente vemos como infratores (industriais, autarquias, vários concessionários), também as entidades que intervêm no processo de licenciamento, inspeção e fiscalização pela sua ação ou omissão.
VII
Desta forma, apesar de termos um quadro legal aparentemente muito completo e com toda a certeza muito complexo, os atentados contra os recursos hídricos são uma constante, de salientar que com relativa frequência, são “enxertados” alguns diplomas que criam uma ideia de alguma permissividade.
Antes de mais, urge que efetivamente se licencie de forma consciente e responsável, fiscalize, inspecione[10], e quando for caso disso se punam as infrações de forma exemplar para desincentivar os abusos, para servir de prevenção geral e especial. Para que isso seja possível, os técnicos, os fiscais, os inspetores, os órgãos de polícia criminal, tal como os magistrados devem estar munidos com as ferramentas indispensáveis para o desempenho da sua atividade, devendo-se começar a pensar numa norma idêntica à do CP espanhol para responsabilizar criminalmente os funcionários envolvidos. E, ao mesmo tempo, como tem vindo a ser defendido por alguns setores, criar tribunais especializados em matéria de ambiente.
Questiona-se até quando vão os organismos competentes e os demais intervenientes ignorar esta problemática como se fosse algo de utópico, ao invés de adotar uma cultura de co-responsabilidade no cumprimento da legislação, prevenindo calamidades como as que temos vindo a assistir?
Neste contexto, assistimos a uma progressiva degradação da qualidade das nossas águas e demais recursos naturais, cuja natureza escassa exige medidas imediatas, sérias e eficazes, sob pena de, a curto prazo, já não existir património natural para legar às gerações seguintes, evidenciando-se ainda as implicações significativas na vida das atuais populações cujos territórios vão ficando desertos.
J.M.Ferreira
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[1] Disposições conjugadas dos art.ºs 9.º e 66.º da Constituição da República Portuguesa.
[2] Lei n.º 19/2014, de 14 de abril – define as bases da política de ambiente.
[3] Decreto – Lei n.º 226-A/2007, de 31 de maio.
[4] Decreto-Lei n.º 75/2015, de 11 de maio.
[5] No caso das estações de tratamento das águas residuais das autarquias vigora o Decreto-Lei n.º 152/97, de 19 de junho.
[6] Decreto-Lei n.º 147/2008, de 29 de julho.
[7] Compete à autoridade nacional da água na área da utilização e às demais entidades a quem for conferida legalmente competência para o licenciamento da utilização dos recursos hídricos nessa área, cabendo-lhes igualmente a competência para a instauração, a instrução e o sancionamento dos processos de contraordenações por infrações cometidas na sua área de jurisdição, colaborando na ação fiscalizadora as autoridades policiais ou administrativas com jurisdição na área, devendo prevenir as infrações ao disposto nesta lei e participar as transgressões de que tenham conhecimento.
[8] Compete à Inspeção-Geral da Agricultura, do Mar, do Ambiente e do Ordenamento do Território.
[9] Disposições conjugadas do art.º 89.º e ss da Lei da Água e art.º 18.º da Lei n.º 50/2006, de 29 de agosto, com a redação dada Lei n.º 114/2015 de 28 de agosto (lei -quadro das contraordenações ambientais), com o Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de outrubro, e a aplicação subsidiária, em tudo o que não for contrário, de algumas normas do Código Penal e do Código de Processo Penal.
[10] A propósito do incêndio numa coletividade em Tondela o Ministro da Administração Interna anunciou recentemente uma vistoria nacional para garantir a segurança destes espaços coletivos. No domínio ambiental dever-se-ia seguir este exemplo e fiscalizar/inspecionar todas as instalações suscetíveis de poluir os recursos hídricos, bem como a compatibilidade entre as licenças emitidas e os valores legalmente definidos.
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